
O
vaqueiro Eldis Trajano da Silva ficou preso por engano, no lugar do
irmão, durante dois anos e oito meses no sistema carcerário do Rio
Grande do Norte.
Esse irmão, de nome semelhante, Eudes Trajano da Silva, é o verdadeiro
culpado pelos crimes de roubo, furto e falsidade ideológica pelo qual
ele acabou respondendo.
Eldis, o inocente, foi solto na última segunda-feira (9). De acordo com a
advogada Marilene Batista de Oliveira, ele estava encarcerado desde
abril de 2017, quando foi levado pela polícia do seu trabalho, no
município de Pedro Velho. Eldis da Silva tem 36 anos e nasceu e se criou
em Piriti, na zona rural de Canguaretama.
De acordo com a advogada, Eldis estava na propriedade do patrão, onde
trabalhava de vaqueiro, quando uma guarnição policial o prendeu. Os
policiais estavam atrás de Eudes, com “u” no início e “e” no final,
irmão dele. Mesmo assim, o levaram. Os nomes parecidos teriam induzido
ao erro. “Eles não pediram sequer uma identificação antes de prendê-lo”,
reforça a advogada.
Eudes, o irmão procurado da Justiça, cumpria pena em regime semiaberto.
Nesse tipo de regime, o presidiário passa o dia fora da cadeia e retorna
para dormir. Ele não havia voltado para a unidade em que estava lotado,
portanto, foi considerado foragido e a polícia foi até o endereço
indicado para prendê-lo.
Depois de um tempo preso no lugar desse irmão no Centro de Detenção
Provisória do Pirangi, em Natal, Eldis foi transferido para a
Penitenciária Estadual de Parnamirim (PEP). Lá, uma enfermeira o
procurou para lhe entregar a medicação de controle do HIV.
Foi aí que ele disse à mulher que não era portador do vírus. Contudo,
constava em sua ficha que havia sido infectado. Ocorre que Eudes, o
verdadeiro suspeito e foragido, tem Aids. Após essa informação, foi
feito um exame no irmão preso, que constatou que ele falava a verdade e
não tinha o vírus.
Ainda assim Eldis da Silva permaneceu encarcerado. No entanto, o caso
chamou a atenção do diretor da unidade, que comunicou o fato à
Defensoria Pública do Estado. Eldis Trajano da Silva não sabe ler,
sempre morou na zona rural de Canguaretama e não tinha advogado. Ele
sequer sabia informar sua data de nascimento, ou se seu nome era escrito
com a letra “l” ou “u”. Os familiares acreditavam que Eldis estava
morto, pois não tiveram nenhuma notícia durante o cárcere.
Em 2018, a advogada Marilene de Oliveira tomou conhecimento do caso. Ela
é ligada à Pastoral Carcerária e foi até a penitenciária para saber se
havia detentos com a possibilidade de progressão de regime que ainda não
tinham obtido o direito por falta de acompanhamento jurídico. Durante
esse trabalho, se deparou com a história de Eldis e passou a tentar
ajudá-lo.
A advogada requereu a identificação de Eldis Trajano da Silva através do
Instituto Técnico-Científico de Perícia (Itep). Marilene de Oliveira
conta que encontrou dificuldades para concretizar o pleito. Em julho do
ano passado foi feita essa identificação. Segundo a advogada, a defesa
não foi informada e só descobriu em outubro.
Falsidade ideológica
Depois disso, Marilene de Oliveira encontrou outro problema para
conseguir a liberdade de Eldis. Ele respondia por furto e falsidade
ideológica, desta vez em um processo em que constava seu nome real.
Ocorre que os crimes foram praticados meses depois que Eldis da Silva
estava preso. Não havia como ser ele o responsável.
Foi descoberto então que o irmão tinha utilizado as documentações dele
para praticar mais crimes. Eudes, com “u”, foi pego usando o documento
de um homem chamado Francisco Canindé ao ser detido em um furto. Quando a
polícia constatou que era um RH falso, ele apresentou o documento de
Eldis, o seu irmão, afirmando ser o verdadeiro e, assim, atribuindo a
ele dois crimes: furto e falsidade ideológica.
O irmão criminoso foi liberado para responder o processo em liberdade
durante uma audiência, por ser réu primário. Só que, na verdade, o réu
primário era Eldis, que cumpria pena em nome de Eudes. Tempos depois o
irmão foi preso novamente, por descumprir medidas que lhe foram impostas
após a liberação. Neste momento, Eudes passou a cumprir a pena como se
fosse Eldis e a implicá-lo com a Justiça duplamente.
A advogada Marilene de Oliveira conta que, após conseguir a
identificação, foi necessário provar que os crimes tinham sido, todos,
desde o primeiro, cometidos pela mesma pessoa. Pessoa esta que era, na
verdade, o irmão de Eldis da Silva.
No ano passado, Eudes chegou a comparecer em uma audiência e ser
reconhecido pelas vítimas. Ele mesmo afirmou que havia mentido e pediu
perdão ao irmão, que estava sendo injustiçado. Contudo a Justiça ainda
considerou isso insuficiente para soltar Eldis.
Somente na semana passada, na sexta-feira (6), foi concedido ao vaqueiro
Eldis Trajano da Silva um alvará de soltura. Ainda assim, de acordo com
a defesa, o alvará foi emitido com o nome errado, o do irmão. Ele
precisou passar o sábado o e domingo na cadeira para que o erro fosse
consertado nesta segunda. Os advogados agora vão acionar a Justiça para
requerer uma indenização.
"Caso complicado"
O juiz Henrique Baltazar, da Vara de Execuções penais, alega que o caso
Eldis é "muito complicado". "Foi um conjunto de fatores", afirma. Para
Baltazar, o fato de o próprio Eldis Trajano da Silva não portar
documentos e não saber informar a maneira como se escreve o próprio nome
pode ter confundido os policiais na hora do cumprimento do mandato.
Além disso, o magistrado alega que a demora para a resolução da situação
do inocente se deu porque, no início, quem soube dos fatos "talvez não
tenha diligenciado". "Há uma informação nos autos de que o diretor da
PEP desconfiou da situação. Essa informação chegou depois lá no fórum e
não sei o motivo pelo qual ninguém resolveu fazer alguma coisa".
Henrique Baltazar diz ainda que as dificuldades estruturais enfrentadas à
época pelo Instituto Técnico-Científico de Perícia do Rio Grande do
Norte (Itep) tornaram moroso o processo de reconhecimento. "Quando
finalmente isso chegou para mim, eu busquei o Itep para fazer uma
investigação quanto as impressões digitais, para saber realmente quem
era a pessoa. E o Itep não tinha condições de fazer, foi numa época que
estava sem perito suficiente e o Itep demorou muito a esclarecer essa
situação", relata.
"Havia dúvidas se ele estava falando a verdade, ou não. Era um caso
complicado, mesmo, de resolver, porque o próprio preso não sabia seus
dados. Quando a advogada chegou contando essa história, resolvi ir atrás
de diligenciar, para tentar descobrir e cheguei a essa interpretação".
Fonte: G1
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